Deitada no chão da cozinha, Má ouvia o carro que andava devagar pelas ruas esburacadas, os bueiros escancarados e com um cheiro cinza e pegajoso. O domingo de manhã era sempre o mesmo. Crianças gritando, brincando com uma bola murcha na rua; mães ouvindo forró, faxinando, homens jogando dominó na frente das casas. Quem era de igreja ia pro culto ou pra missa, cabelo penteado pra trás, roupa longa, de manga, sapato lustrado, faça chuva ou faça sol. Quem não era de igreja empilhava mais um pouco de pecado, batendo coxa, bebendo cerveja, flertando com homem casado como se a mulher fosse cega. Tudo farinha do mesmo saco de promiscuidade, almas ensebadas.
Quando foi levar o panfleto com animais mansos no paraíso para a Selma, ela riu na cara de Má. Disse que na Bíblia tava escrito que se o pecador se arrepende verdadeiramente ele entra no reino dos céus, ela, então, faria isso: deixaria o arrependimento pro último dia. Má, horrorizada demais pra falar alguma coisa, ficou parada de boca aberta na porta, enquanto via a filha prostituta da Selma sair com um piercing no umbigo. Daquela idade e já tava dando pra qualquer um, com um shortinho esfarrapado enfiado na bunda sempre empinada na garupa de moto. A Raiane que nem chegasse perto dessa menina. Ia apanhar ajoelhada com a Bíblia na mão, pra não esquecer nunca de quem era.
O chão estava frio, impregnado de um líquido viscoso, e Má não conseguia se levantar. Sentia uma dor que queimava o ombro e o ventre, tinha a impressão que ia sufocar, a cara toda empapada. A porta da sala-cozinha estava entreaberta, deixando entrar o som do carro lá de fora. "Desemprego, amarração, doença, preguiça, homossexualismo, magia negra, insônia, venha pra Igreja de Deus. A pastora Flor vai te ajudar a tomar um rumo na vida, a vitória com sabor de mel vem em nome de Jesus". Tentou gritar, mas o grito saía parecendo um miado fraco, rouco.
Era um som irritante. Aqueles gatos malditos da velha Francisca fornicavam a noite toda no seu telhado. Não adiantou ir na casa da vizinha reclamar. Ela dizia que gato é bicho solto, passeador, noturno. A velha até tentou fazer um agrado, dar um pedaço de bolo, arrastando as pernas inchadas até a cozinha cheia de imagem de santo. Má aceitou o bolo e voltou pra casa. Pediu perdão pra Deus por jogar comida fora, mas não ia aceitar nada de quem adora ídolos. Pegou um pedaço de carne bem pequeno e já deixou no jeito pra quando a noite caísse. O tanto que a velha gritou e chorou, dia e noite, quando achou os gatos duros no capacho da porta… Já era louca de qualquer jeito. Os filhos levaram pra algum lugar, uma casa de repouso, a casa de alguém. O que importa? Pelo menos acabou o barulho daqueles bichos nojentos.
Má viu o dia passando, a dor agora insuportável. Era tão insuportável que não conseguia orar. Falar com Deus no meio do vale de lágrimas, pedir pelos meninos, quem ia olhar os meninos? Ela se sentia tão fraca que os pensamentos começaram a variar. Lembrou de quando viajava com os pais, brincava na areia com o irmão, e no fim do dia estava tão cansada que nem jantava. Lembrou de sua mãe pegando seu cabelo cheio e grosso nas mãos, fazendo tranças pequenininhas, com tanto carinho e paciência. Lembrou da escola espaçosa, o uniforme vermelho que sempre chegava em casa imundo, do tanto que ela aprontava com as outras meninas, uma alegria tão grande que parecia que o coração ia explodir. Naquele uniforme, alguns anos depois, ela deu o primeiro beijo, com um gloss doce nos lábios. Choveu depois, nesse mesmo dia. Toda vez que chovia e fazia um friozinho ela pensava naquele beijo. Tinha saudade da menina que era.
Em alguns momentos ela pensava que conseguiria aguentar até alguém entrar na casa. Aquele povo era tão futriqueiro, por que não olhava que a porta estava meio aberta e ia curiar lá dentro? O forró comia solto, chegava a doer a cabeça. Não era nem meio dia ainda e a rua estava cheia de gente andando, gritando, se cumprimentando, as sacolas amarelas cheias de coca-cola, alface, frango assado, as crianças com o suor escorrendo pelo meio das costas. Decidiu ficar bem quieta e esperar uma brecha na barulho pra tentar gritar, pra pedir socorro. Não queria que os filhos dela a achassem daquele jeito. O culto acabava meio dia e quinze. Meio dia e quinze.
Foi difícil pensar em como organizar tudo. Depois de dez anos ligou pra mãe. Falou que queria pegar um ônibus de volta pra casa. A mãe, desesperada, mais chorava que ouvia. Ela não queria contar os detalhes. Só queria ir embora. Não era do feitio da mãe jogar nada na cara, nem dizer que tinha avisado, mas ela sabia que a culpa era dela. Má quem tinha ido embora. Tinha deixado ele ficar daquele jeito. Tinha perdoado o primeiro empurrão. Não precisava do dinheiro dele, podia voltar pra casa. Por que ela não voltou pra casa? Era só voltar pra casa. Conversou com as crianças, que já estavam desbotadas, sem brilho. Contou que iriam embora em breve. Que fossem pra igreja normalmente, ela ia aproveitar que o domingo era cheio, assim ele não ia fazer nada com todo mundo lá ouvindo. Não ia querer perder o respeito. Tinha gente lá que trabalhava com ele, logo todo mundo ia saber.
Má achou que o plano tinha dado certo. Calado, ele foi na cozinha, pegou um copo de água, a cara amassada de sono. Ela já conseguia respirar fundo, até os ombros se endireitaram um pouco. Ela não ia levar nada, só a roupa dela e dos meninos. Era só falar pros vizinhos que os pais dela estavam doentes, que precisavam de ajuda. Depois, ele podia arranjar outra. Ninguém ia falar que ele era corno, ou que não sabia segurar a mulher. Disse tudo isso olhando nos olhos dele, ele calado, como se ainda não estivesse acordado direito ainda.
A primeira facada pegou Má de surpresa. Bem em cima da cicatriz da cesária. Parecia que tinha arrebentado tudo, aberto ela de fora a fora. Ele colocou um pano na sua boca, e socou, socou tanto, com tanto ódio, com tanta força, os músculos explodindo na camiseta sem manga, o joelho no seu pescoço. O sangue escorria, ela mal conseguia respirar. O medo parecia maior que a vontade de viver. Quando ela desmaiou, ele tirou o pano, tomou banho com calma, colocou uma camisa passada e saiu cumprimentando os vizinhos, falando que o patrão precisou e ele ia trabalhar no domingo. Até no domingo. Mas fazer o quê? Não ia perder um emprego bom daquele, ganhar dinheiro pra bater em playboy.
Má abriu os olhos de novo, a porta entreaberta. Estava silencioso agora, ou era ela que não ouvia mais nada? Respirou fundo, ou pelo menos o tanto que conseguia, e gritou. Gritou como nunca, gritou mais alto do que já tinha gritado na vida, gritou mais do que quando a pastora expulsava os demônios, mais do que quando o médico subiu na barriga dela na sala de parto, mais do que quando segurou sua Naomi morta no colo. Gritou por uma eternidade, gritou como se o próprio Deus fosse entrar pela porta.
Selma entrou correndo, sem saber onde procurar porque não conhecia a casa. Desesperada, chorando, ofegando, Selma chamou os outros vizinhos, que ligassem pros bombeiros, pra polícia, não mexe nela senão alguma coisa perfura, o sangue sai mais rápido, o coração não aguenta, não sei, não sou médica, mas não mexe, não mexe.
Má olhou pra Selma, sufocando, ardendo, lentamente. No carro de som lá fora ela ouvia: "Bebedeira, vício em drogas, infidelidade, depressão, dívida. A pastora Flor está aqui para mudar a sua vida. Será seu o reino dos céus."
Boa leitura! :)